Quando o sertão do Nordeste e o Saara eram verdes

QUANDO O SERTÃO DO NORDESTE E O SAARA ERAM VERDES

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Como esses registros de variações do clima na Áustria podem ser tão parecidos com os de Santa Catarina, aqui no Brasil?”

O físico italiano Augusto Mangini, da Universidade Heidelberg, Alemanha, fez essa pergunta em março de 2014 na sala do geólogo Francisco Cruz no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP) enquanto comparava os gráficos resultantes de suas próprias pesquisas com as do colega brasileiro, que acabara de conhecer pessoalmente.

Ambos reconstituíam climas do passado analisando a proporção entre os isótopos de oxigênio e carbono de estalagmites de cavernas. Isótopos são variantes de um elemento químico, que diferem na quantidade de nêutrons.

A possiblidade de entender a semelhança entre os dados colhidos na caverna de Spannagel, no Tirol, Áustria, e a de Botuverá, em Santa Catarina, originou um trabalho conjunto entre as equipes do Brasil e da Alemanha. Depois de cinco anos analisando informações que já tinham e as que coletaram depois, relataram as mudanças climáticas nos últimos 10 mil anos na América do Sul, Europa e África em um artigo publicado em outubro na revista científica Nature Communications.

Em paralelo, estudos da composição química de estalagmites e solos de cavernas do Nordeste brasileiro indicaram que as oscilações do clima decorrentes da variação da insolação se mostraram opostas nos hemisférios Norte e Sul – se esfriava em um, esquentava no outro em terra firme – e sugerem uma paisagem diferente da atual, com florestas mais fechadas e altas ocupando a atual Caatinga brasileira.

Ao mesmo tempo, o norte da África era bem mais úmido que hoje e a área ocupada pelo deserto do Saara, bem menor. As análises, somadas às de outros grupos da USP, mostraram que o atual clima semiárido no Nordeste brasileiro deve ter se estabelecido há cerca de 4.200 anos, quando, de acordo com os registros em cavernas, as chuvas escassearam e as plantas adaptadas a ambientes mais secos começaram a dominar as terras da região.

A Terra gira como um pião, ao redor de si mesma e de seu próprio eixo”, compara Cruz.

Induzida pela força gravitacional do Sol e da Lua, a inclinação ‒ também  chamada de precessão ‒ do eixo da Terra completa um ciclo de oscilação a cada 23 mil anos e pode aumentar ou diminuir a distância do planeta com o Sol e a Lua.

Por causa da inclinação do eixo de rotação e da órbita elíptica ao redor do Sol é que a incidência de luz solar sobre a superfície da Terra varia e as estações do ano se alternam; se o eixo fosse vertical e a órbita circular, a radiação solar não oscilaria ao longo do ano e não haveria estações.

Caverna do Trapiá, no Rio Grande do Norte, onde pesquisadores da USP coletaram estalagmites para reconstituir o clima na região. Foto: Solon Almeida Netto

Para conhecer os efeitos das variações da insolação sobre o clima global, Cruz trabalhou com o físico alemão Michael Deininger, da Universidade de Mainz, na Alemanha, ex-aluno de doutorado de Mangini, a quem ele delegou seus trabalhos ao se aposentar e voltar para a Itália.

Com suas equipes, eles examinaram as abundâncias entre isótopos de carbono, oxigênio e estrôncio em 37 registros de variações climáticas registradas em minerais de estalagmites e a composição química de sedimentos de lagos e de oceanos. A maior abundância, por exemplo, da forma mais pesada de oxigênio (O18) sobre a mais comum (O16) é uma indicação de chuvas frequentes.

As análises indicaram que uma maior insolação deve ter incidido sobre a região tropical – ao largo do equador – do hemisfério Norte entre 10 mil e 6 mil anos atrás. Quanto maior a insolação, mais altas as temperaturas sobre a superfície terrestre e mais quentes e agitadas as massas de ar que circulam na alta atmosfera, trazendo mais chuva a uma região e, inversamente, menos em outra.

Nesse período, chovia mais na África, alimentando florestas, lagos, animais e populações humanas que ocuparam as atuais bordas do deserto do Saara, então cerca de 40% menor, como já haviam concluído pesquisadores das universidades do Texas e do Arizona, nos Estados Unidos, em um artigo de janeiro de 2015 na Nature Geoscience.

Até 6 mil anos atrás, o clima nas regiões onde hoje está Mali, Senegal e outros países da África subsaariana era úmido”, afirma Cruz.

Caverna Rainha, no Rio Grande do Norte, cujas estalagmites também indicaram a ocorrência de uma floresta úmida na região até 4 mil anos atrás. Foto: Solon Almeida Netto

Efeitos opostos

No hemisfério da Terra que recebe mais calor em razão da inclinação do eixo da Terra, a circulação de massas de ar úmido se intensifica, aumentando a precipitação. No outro hemisfério, a insolação é menor e as chuvas mais escassas, principalmente no verão, quando entra menos umidade dos oceanos para o continente.

Nesse estudo, os pesquisadores mostraram como a inclinação do eixo da Terra pode modificar a circulação de massas de ar da camada mais baixa da atmosfera em toda a Terra, incluindo as de clima temperado da Europa. Desse modo, enquanto as florestas da região central da África vicejavam, formando o chamado Saara verde, as regiões de latitudes médias como a Europa passavam por períodos de seca.

O clima mais seco também perdurou na maior parte do Brasil, incluindo a Amazônia, entre 10 mil e 6 mil anos atrás, de acordo com o artigo na Nature Communications (ver infográfico). Por essa razão é que as variações do clima da região das cavernas de Spannagel, na Áustria, e de Botuverá, em Santa Catarina, separadas por 10 mil quilômetros de distância e cada uma em um hemisfério, se mostraram semelhantes.

Este trabalho apareceu pela primeira vez em Pesquisa FAPESP sob a licença CC-BY-NC-ND 4.0. Leia o original aqui.

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